0:00:05.060,0:00:07.360 A Arte... 0:00:07.370,0:00:08.700 ...em questão. 0:00:10.240,0:00:12.420 Um jovem. 0:00:12.440,0:00:14.420 Um velho. 0:00:17.100,0:00:18.700 Testemunhas. 0:00:21.000,0:00:23.040 Um quadro de Rembrandt. 0:00:24.220,0:00:27.300 Uma cena tocante de reencontro? 0:00:27.360,0:00:29.000 Não é só isso. 0:00:29.040,0:00:33.420 Trata-se da história do "Filho Pródigo", extraída do Novo Testamento. 0:00:33.460,0:00:36.620 Depois de ter deixado a sua família 0:00:36.640,0:00:40.940 e delapidado a sua herança com mulheres e farras, 0:00:41.000,0:00:45.000 ele passa pela experiência da miséria como [br]tratador de porcos, 0:00:45.040,0:00:46.750 e regressa para a casa do seu pai... 0:00:46.800,0:00:50.200 ...que, surpresa das surpresas, o acolhe [br]de braços abertos... 0:00:50.240,0:00:52.080 e lhe sacrifica um novilho cevado... 0:00:52.120,0:00:56.560 suscitando o ciúme do seu irmão mais velho, [br]trabalhador e fiel. 0:00:57.240,0:00:59.120 Curiosa justiça! 0:00:59.140,0:01:00.400 Um arrependimento tardio, 0:01:00.440,0:01:03.180 apaga a infidelidade e o deboche? 0:01:04.760,0:01:07.300 Vale mais do que uma vida de virtude? 0:01:08.260,0:01:11.960 Trata-se, com efeito, de exprimir os critérios [br]especiais da justiça divina: 0:01:12.400,0:01:16.780 "Deus regozija-se mais com uma conversão [br]do que com 99 justos." 0:01:19.040,0:01:20.080 Mas em Rembrandt 0:01:20.140,0:01:23.760 a história e o quadro parecem voluntariamente [br]obscurecidos. 0:01:23.780,0:01:27.160 Nenhum sinal religioso, nenhuma presença divina. 0:01:27.220,0:01:28.660 Qual é a ideia? 0:01:28.700,0:01:31.880 Porque a ligação com Deus é evidente e implícita? 0:01:33.180,0:01:38.000 Ou, pelo contrário, porque Rembrandt quis [br]adicionar alguma coisa no sentido religioso? 0:01:38.010,0:01:42.760 Episódio 5: REMBRANDT - "O Retorno do Filho Pródigo"- "A força do lado obscuro." 0:01:43.900,0:01:46.200 Parte 1: "A arte de obscurecer." 0:01:47.380,0:01:50.840 O que resta verdadeiramente da história [br]do filho pródigo? 0:01:50.840,0:01:52.600 Em primeiro lugar, o filho! 0:01:52.600,0:01:56.260 De pés nus e sapatos gastos, 0:01:56.260,0:02:00.280 roupas descosidas, revelando as pernas. 0:02:00.280,0:02:03.800 Uma simples corda a fazer de cinto. 0:02:03.800,0:02:06.060 Crânio rapado e avermelhado 0:02:06.060,0:02:09.820 Rosto emaciado, pálpebras inchadas, 0:02:09.820,0:02:12.500 de joelhos, ele conheceu a decadência e a vergonha. 0:02:13.540,0:02:15.180 É um corpo de mártir. 0:02:15.180,0:02:18.020 A seguir, o pai: 0:02:18.020,0:02:21.840 Um homem possante e experimentado: [br]furiosas pinceladas brancas, 0:02:21.840,0:02:23.780 cabelos e barba. 0:02:23.780,0:02:27.540 Um homem sábio e calmo; os lábios unidos 0:02:27.540,0:02:31.520 um olho virado para o filho, o outro abstraído [br]num pensamento. 0:02:33.940,0:02:37.680 Um homem rico e amante: as suas vestes aquecem, 0:02:37.700,0:02:40.140 auréolam o rosto de vermelho, 0:02:40.180,0:02:42.560 desposam a curva do seu crânio. 0:02:43.780,0:02:46.560 As mãos reconfortam e tratam: 0:02:46.560,0:02:48.760 uma, fina e clara, 0:02:48.760,0:02:50.420 a outra, mais escura e robusta. 0:02:52.180,0:02:54.580 O pai envolve literalmente o seu filho. 0:02:56.540,0:03:00.040 O essencial está aqui, nesta cena de teatro[br]em miniatura! 0:03:01.680,0:03:05.200 Dir-se-ia que as outras personagens são figurantes! 0:03:05.240,0:03:08.520 O filho mais velho, com o mesmo manto [br]vermelho do pai. 0:03:08.560,0:03:11.240 No limiar de um alpendre acolhedor, dois servos. 0:03:14.760,0:03:17.200 Ao fundo, uma mulher com um pingente vermelho 0:03:18.500,0:03:19.760 Nada de estranho? 0:03:19.760,0:03:22.780 Comparemos com esta representação mais tradicional: 0:03:22.780,0:03:25.600 Aqui, pai e filho olham-se reciprocamente, 0:03:25.600,0:03:28.880 os servos trazem vestes novas, 0:03:28.880,0:03:32.040 os sapatos e o anel pedidos pelo pai 0:03:32.040,0:03:35.480 enquanto se conduz alegremente o novilho [br]para o matadouro. 0:03:35.500,0:03:37.880 Aqui, os símbolos do sagrado abundam: 0:03:37.900,0:03:40.580 o sacrifício do novilho evoca o de Cristo, 0:03:40.660,0:03:43.220 o cão branco, a pureza e a fé. 0:03:43.260,0:03:46.320 Tudo é perfeitamente "claro", isto é, "didático"... 0:03:48.480,0:03:52.420 Trinta anos antes, Rembrandt inscrevia-se [br]na mesma linha: 0:03:52.440,0:03:56.580 lá atrás, levam-se as vestes, abre-se uma [br]portada da janela 0:03:56.580,0:03:59.900 à frente, a vista de perfil oferece o máximo [br]de legibilidade: 0:03:59.900,0:04:04.720 um sapato perdido... o cajado caído... 0:04:04.720,0:04:06.920 ...o irmão mais velho está ausente... 0:04:06.920,0:04:09.320 o corpo do filho está tão miserável, 0:04:09.320,0:04:11.040 o seu rosto tão marcado 0:04:11.080,0:04:13.820 que o perdão do pai parece quase "merecido". 0:04:14.700,0:04:18.100 Tudo está literalmente como na história bíblica. 0:04:18.100,0:04:20.440 Mas é esse, verdadeiramente, o seu espírito? 0:04:20.440,0:04:22.020 Aqui, não há um "depois": 0:04:22.060,0:04:24.140 as personagens parecem sideradas, 0:04:24.160,0:04:26.780 sem ação em curso, nem intenção clara. 0:04:27.540,0:04:29.340 E para qualquer traço de um "antes", 0:04:29.360,0:04:31.260 este baixo-relevo está apenas esboçado. 0:04:31.580,0:04:35.380 Ele condensa o episódio do deboche com o da queda: 0:04:35.400,0:04:38.420 com a espada à cintura, o filho pródigo toca flauta, 0:04:38.440,0:04:39.800 enquanto aos seus pés, à sua espera... 0:04:39.820,0:04:43.550 dois suínos! 0:04:45.100,0:04:46.220 Colocado de costas, 0:04:46.240,0:04:49.620 é impossível ler a miséria e o arrependimento [br]do filho: 0:04:49.640,0:04:52.620 o perdão do pai parece, portanto, não correspondido. 0:04:53.260,0:04:56.860 Rembrandt esvazia a narração e as efusões sentimentais 0:04:56.880,0:04:58.340 que banalizam a cena 0:04:58.340,0:05:00.700 e a fazem reentrar na ordem "normal" das coisas. 0:05:02.500,0:05:07.240 E para ser ainda mais perturbante, o pintor interpela o espetador: 0:05:07.260,0:05:09.380 Por um lado, ele joga com a identificação, 0:05:09.400,0:05:12.600 pois, que temos nós, primeiro, diante dos olhos? 0:05:12.640,0:05:16.120 Os pés do filho, cuja posição partilhamos. 0:05:17.740,0:05:21.140 Por outro lado, ele introduz elementos perturbadores. 0:05:21.160,0:05:23.100 Porque os rostos nos interrogam: 0:05:23.100,0:05:25.480 - teriam sido vocês generosos como o pai... 0:05:25.480,0:05:28.580 ...ou ficariam à margem, no limite da mesquinhez... 0:05:28.580,0:05:29.880 como o filho mais velho? 0:05:32.040,0:05:36.000 Mas então, porquê desenvolver esta identificação do espetador... 0:05:36.000,0:05:38.240 num quadro que não foi feito para uma igreja... 0:05:38.240,0:05:41.280 e que Rembrandt guardou no seu atelier[br]até à sua morte? 0:05:43.260,0:05:44.900 Parte 2: "O filho pródigo era um pintor." 0:05:45.680,0:05:49.820 Vinte e oito anos antes, Rembrandt pintou a sua primeira visão da parábola: 0:05:49.820,0:05:52.880 a popular cena do deboche. 0:05:52.880,0:05:54.840 Ricamente vestido, 0:05:54.860,0:05:56.540 em plena farra, 0:05:56.540,0:05:58.280 num bordel luxuoso, 0:05:58.320,0:06:00.580 com uma prostituta sentada nos joelhos, 0:06:00.600,0:06:04.280 o filho pródigo convida-nos a saborear [br]os prazeres de uma vida faustosa... 0:06:05.200,0:06:08.700 ...e a provar este pavão, símbolo do luxo e da vaidade! 0:06:10.660,0:06:13.840 Rembrandt inscreve-se numa tradição holandesa: 0:06:13.840,0:06:17.060 a coberto da cena bíblica e da denúncia moral [br]dos prazeres, 0:06:17.060,0:06:19.920 pormenoriza-se a representação destes, com deleite. 0:06:21.700,0:06:23.380 Mas a cena ganha uma outra dimensão... 0:06:23.380,0:06:27.040 ...quando se sabe que se trata de um autorretrato. 0:06:27.040,0:06:28.780 Este não é um caso isolado: 0:06:28.780,0:06:32.060 os seus confrades representam-se nas tabernas... 0:06:32.060,0:06:35.360 e Dürer desenha-se no meio de suínos... 0:06:35.360,0:06:39.280 ...Rembrandt dá à prostituta os traços de Saskia van Uylenburgh, 0:06:39.280,0:06:40.920 a sua própria mulher! 0:06:42.640,0:06:46.780 Ele faz desta tela, a ilustração irónica [br]do seu novo estatuto: 0:06:46.800,0:06:50.060 graças à sua riquíssima esposa, que ele exibe orgulhosamente... 0:06:50.060,0:06:52.980 ...ele obtém o direito de trabalhar em Amesterdão 0:06:53.020,0:06:55.360 ...onde as encomendas se multiplicam... 0:06:56.180,0:06:59.400 ...ele compra uma soberba casa num bairro elegante... 0:06:59.420,0:07:01.680 ...e desenvolve uma coleção. 0:07:02.360,0:07:04.960 Mas, ao se retratar como filho pródigo, 0:07:05.000,0:07:07.660 Rembrandt assume as suas tendências dissipadoras 0:07:07.680,0:07:12.560 e faz de Saskia, retraída, o olhar elevado, a força moderadora do casal. 0:07:13.540,0:07:15.320 Mas ele também é premonitório... 0:07:16.620,0:07:18.960 Em 1642, Saskia morre. 0:07:20.060,0:07:22.540 Dezasseis anos mais tarde, Rembrandt [br]está arruinado, 0:07:22.580,0:07:24.640 a sua casa e bens vendidos, 0:07:25.160,0:07:27.100 e a sua reputação está afetada, 0:07:27.120,0:07:30.760 com o nascimento de uma criança fora do casamento, [br]da sua nova companheira. 0:07:32.340,0:07:33.780 As encomendas acabam 0:07:34.980,0:07:38.120 e quando Hendrickje, morre em 1663, 0:07:38.140,0:07:41.700 o paralelo pessoal com o filho pródigo arrependido[br]torna-se evidente: 0:07:42.540,0:07:45.940 sozinho, arruinado, ostracizado pela Igreja, 0:07:45.980,0:07:49.040 o pintor aspira voltar a juntar-se à comunidade [br]de crentes 0:07:49.060,0:07:50.480 e aos braços de Deus. 0:07:51.740,0:07:53.880 Ele manifesta também a sua fé protestante 0:07:53.920,0:07:56.540 abrindo-lhe o seu coração sem nada implorar: 0:07:56.560,0:08:01.580 apenas Deus, na sua infinita liberdade, lhe concederá [br]ou não a Sua graça. 0:08:05.440,0:08:10.620 Parte 3: "A força das trevas." 0:08:10.620,0:08:11.400 Mas o quadro não ficou célebre 0:08:11.400,0:08:14.180 por causa da identificação de Rembrandt com [br]o filho pródigo. 0:08:14.220,0:08:15.900 Na rica República das Sete Províncias-Unidas [br]dos Países Baixos, 0:08:15.920,0:08:18.240 é a clientela burguesa que constitui o mercado. 0:08:18.300,0:08:22.860 E ela quer que as obras religiosas se integrem nas suas paredes forradas de quadros... 0:08:22.880,0:08:24.680 ...interpelando o espetador 0:08:24.720,0:08:26.900 numa relação com "a vida quotidiana". 0:08:28.460,0:08:30.780 Ou, para encenar a história religiosa, 0:08:30.820,0:08:32.660 Rembrandt inova de duas maneiras. 0:08:33.220,0:08:35.780 Primeira estratégia: "utilizar a perspetiva 0:08:35.820,0:08:38.660 para aproximar a história religiosa da vida contemporânea." 0:08:39.500,0:08:43.960 Em Lucas de Leyde, "O julgamento de Cristo" situa-se numa paisagem urbana contemporânea 0:08:43.960,0:08:45.380 por trás de uma multidão. 0:08:47.660,0:08:50.920 Com Pieter Aersten e Joachim Beuckelaer, 0:08:50.980,0:08:54.240 uma "Fuga para o Egito" ou um "Filho Pródigo debochado" 0:08:54.240,0:08:57.100 figuram por trás de apetitosas bancas dos mercados. 0:09:00.920,0:09:07.080 E em Bruegel, o tema essencial, "Cristo levando a cruz" ou "São Paulo", 0:09:07.100,0:09:10.120 tornam-se detalhes no meio da multidão. 0:09:13.900,0:09:18.180 A vantagem é clara: o espetador participa mais. 0:09:20.000,0:09:21.780 Ele tem de decifrar, 0:09:23.060,0:09:24.280 de se interrogar, 0:09:25.580,0:09:28.560 de reinterpretar o que o atraiu ao primeiro olhar 0:09:29.620,0:09:32.000 ...à luz de um acontecimento religioso. 0:09:35.020,0:09:37.060 Melhor: este último parece mais "verdadeiro" 0:09:37.120,0:09:38.200 porque tem uma ligação com um "mundo" 0:09:38.200,0:09:39.790 semelhante ao dos espetadores. 0:09:43.870,0:09:46.250 Rembrandt aprecia estes efeitos de perspetiva. 0:09:47.300,0:09:52.620 Mas, em comparação com Van Leyden, ele escolhe um enquadramento mais cerrado e mais frontal 0:09:52.620,0:09:55.070 e acaba por substituir a multidão no centro 0:09:55.100,0:09:58.600 por misteriosas aberturas. 0:09:58.670,0:10:01.470 As duas imagens têm, cada uma, a sua teatralidade: 0:10:01.500,0:10:05.320 Uma tem o lado "épico e vivo" do teatro medieval; 0:10:07.450,0:10:13.450 a outra, o "mistério e a intemporalidade" de [br]um instante suspenso. 0:10:13.470,0:10:17.120 É à segunda categoria que pertence "O Filho Pródigo": 0:10:17.150,0:10:21.720 com as suas linhas de fuga, dirigidas tanto [br]ao pai como ao filho, 0:10:21.800,0:10:23.950 o grande alpendre sombrio, 0:10:23.970,0:10:27.820 as suas personagens principais descentradas, [br]como que afastadas 0:10:27.870,0:10:31.470 e os seus rostos com uma identidade incerta. 0:10:32.400,0:10:38.870 Segunda estratégia: "Abanar violentamente o espetador, através de uma teatralidade exarcebada." 0:10:38.900,0:10:42.120 É a teatralidade de Caravaggio, cujo estilo foi imitado [br]na Holanda. 0:10:42.150,0:10:45.020 Rembrandt é o seu herdeiro indireto: 0:10:46.450,0:10:47.850 - reduzido número de personagens; 0:10:47.870,0:10:51.350 - efeitos de luz violentos como de holofotes; 0:10:51.370,0:10:56.350 personagens colocadas em primeiro plano, para [br]uma identificação imediata. 0:10:58.120,0:11:02.970 Graças à escuridão, Rembrandt consegue unir [br]dois tipos de teatralidade: 0:11:03.020,0:11:07.150 - a que "abana" o espetador, simplificando [br]a composição... 0:11:07.200,0:11:09.150 - ...e a que o faz "participar", 0:11:09.200,0:11:13.550 deixando-o "entrever um mundo" que dá largas [br]à sua imaginação. 0:11:15.000,0:11:20.200 Próximo episódio: "Os Embaixadores", de Holbein - "Do amor de um pai ao amor de si próprio?" 0:11:20.200,0:11:25.930 Mais informações em: www.canal-educatif.fr 0:11:25.930,0:11:28.900 Realizado por: 0:11:28.900,0:11:31.900 Produzido por: 0:11:31.900,0:11:34.900 Consultor científico: 0:11:34.900,0:11:37.930 Este filme existe graças ao apoio de mecenas (porque não você?) e do Ministério Francês da Cultura e da Comunicação. 0:11:37.930,0:11:40.930 Voz-off: 0:11:40.930,0:11:43.900 Montagem e videografismo: 0:11:43.900,0:11:46.900 Pós-produção e Som: 0:11:46.900,0:11:49.900 Seleção musical: 0:11:49.900,0:11:52.930 Música: 0:11:52.930,0:11:55.930 Créditos das fotografias: 0:11:55.930,0:11:58.900 Agradecimentos:[br]Tradução: Isabel Vaz Belchior 0:11:58.900,0:12:01.100 Uma produção CED